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28/04/2011

O Arco-Íris da Gravidade

Thomas Pynchon - Gravity's Rainbow (1973) , capa da 1ª edição.


"Um grito atravessa o céu. Já aconteceu antes, mas nada que se compare com esta vez.

É tarde demais. A Evacuação ainda continua, mas é tudo teatro. Não há luzes dentro dos vagões. Não há luz em lugar nenhum. Acima de sua cabeça elevam-se vigas velhas como uma rainha de aço, e em algum lugar lá no alto vidro que deixaria entrar a luz do dia. Mas é noite. Ele tem medo do modo como o vidro vai cair – em breve –, vai ser um espetáculo: o desabamento de um palácio de cristal. Porém caindo na escuridão total, sem nenhum lampejo de luz, só um grande estrondo invisível.

Sentado dentro do vagão, que tem vários níveis, imerso numa escuridão de veludo, sem nada para fumar, ele sente metal mais perto e mais longe rangendo e estalando, baforadas de vapor escapulindo, uma vibração na carroceria do vagão, uma expectativa, uma inquietação, todos os outros comprimindo-se a sua volta, os fracos, carneiros da segunda leva, todos desprovidos de sorte e tempo: bêbados, velhos ex-combatentes ainda em estado de choque por efeito de tiros de canhões obsoletos há 20 anos, vigaristas com trajes de cidade, vagabundos, mulheres exaustas com mais filhos do que parece possível uma pessoa ter, empilhados junto com as outras coisas a ser conduzidas à salvação. Só os rostos mais próximos são visíveis, e mesmo assim como imagens vagas num visor, rostos esverdeados de VIPS entrevistos por detrás de janelas à prova de bala disparando pela rua…

Começaram a andar. Vão em fila, saindo da estação principal, do centro da cidade, rumo aos bairros mais velhos e desolados. É por aqui que se sai? Rostos voltam-se para as janelas, mas ninguém ousa perguntar, não em voz alta. Chove. Não, não se trata de um desvencilhar, e sim de um emaranhamento – passam por baixo de arcos, entradas secretas de concreto podre que apenas pareciam ser o trevo de um viaduto… uns cavaletes de madeira escurecida deslizam lentamente por cima deles, e já  começaram os cheiros de carvão de um passado distante, cheiros de nafta no inverno, em domingos em que não havia tráfego algum, das formações feito coral, de uma vitalidade misteriosa, em torno das curvas cegas e desvios desertos, um cheiro azedo de vagões ausentes, de ferrugem velha, a crescer naqueles dias cada vez mais vazios, luminosos e profundos, especialmente ao amanhecer, com sombras azuis selando sua passagem, tentando reduzir os acontecimentos ao Zero Absoluto… e quanto mais avançam mais pobre é tudo a sua volta… cidades secretas e decrépitas dos pobres, lugares com nomes que ele nunca ouviu antes… paredes destruídas, cada vez menos telhados, cada vez menos possibilidades de luz. A estrada, que devia abrir-se numa outra mais larga, em vez disso é cada vez mais estreita, mais quebrada, com esquinas cada vez mais fechadas, até que de repente, cedo demais, eles se vêem debaixo do arco final: uma freada e um sacolejo terrível. É um juízo que não permite recurso.

A caravana parou. É o fim da linha. Todos os evacuados recebem ordem de saltar. Andam devagar, mas sem opor resistência. Aqueles que os conduzem têm na cabeça rosetas cor de chumbo, e não falam. É algum hotel enorme, velhíssimo, escuríssimo, uma extensão de ferro dos trilhos e chaves que os trouxeram até aqui… Luminárias globulares, pintadas de verde-escuro, que há séculos não são acesas, pendem dos beirais de ferro trabalhado… a multidão avança sem murmúrios nem tosses por corredores retos e funcionais como os de um depósito… superfícies de um negro aveludado envolvem esta movimentação: um cheiro de madeira velha, de alas remotas há anos abandonadas recém-reabertas para armazenar este amontoado de almas, de reboco frio onde todos os ratos morreram, só restam seus fantasmas, imóveis como pinturas rupestres, teimosos e luminosos nas paredes… os evacuados são levados em grupos, num elevador – um andaime móvel de madeira, aberto em todos os lados, suspenso por cordas velhas sujas de breu e roldanas de ferro fundido com raios em forma de S. Em cada pardacento, saltam e entram passageiros… milhares de cômodos silenciosos sem luz…

Alguns aguardam a sós, alguns dividem os quartos invisíveis com outros. Invisíveis, sim, pois que importa a mobília nesta etapa dos acontecimentos? Os sapatos pisam a sujeira mais velha da cidade, as últimas cristalizações de tudo que a  cidade negara, ameaçara, mentira a seus filhos. Cada um ouve uma voz, que lhe dá a impressão de falar só para ele, dizendo: "No fundo você não acreditava que ia ser salvo. Ora, a esta altura todos nós já sabemos quem somos. Ninguém jamais iria se dar ao trabalho de salvar você , meu caro…".

Não há saída. É deitar-se e esperar, em silêncio. O grito se sustenta no céu. Quando vier, virá na escuridão ou trará sua própria luz? A luz virá antes ou depois?

Mas já é dia. Há quanto tempo estará claro? Esse tempo todo a luz estava entrando, filtrada, juntamente com o ar frio da manhã que agora roça seus mamilos: começa a revelar um amontoado de vagabundos bêbados, uns de uniforme, outros à paisana, agarrados a garrafas vazias ou quase vazias, um jogado sobre uma cadeira, outro encolhido dentro de uma lareira fria, outros esparramados em diversos divãs, tapetes empoeirados e chaises-longues, nos diferentes níveis da sala enorme, roncando e ofegando em diversos ritmos, num coro incessante, enquanto a luz londrina, luz hibernal e elástica, cresce entre as faces das janelas de caixilhos, cresce entre as camadas de fumaça da noite passada que ainda paira, a dissipar-se, entre as vigas enceradas do teto. Todos esses supinos, esses companheiros de luta, têm rostos rosados de camponeses holandeses sonhando com a ressurreição certeira nos próximos minutos."

Thomas Pynchon - O Arco-Íris da Gravidade; capítulo 1 - Além do Zero, páginas 9, 10 e 11. Tradução de Paulo Henriques Britto

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